Mirella Faur
Hécate, a Deusa com múltiplas faces
Hécate Triformis, a Grande Mãe
Tríplice
Hécate é uma das mais antigas
imagens míticas da Grécia pré-helênica e
a personificação original da Deusa
Tríplice. Filha de Nyx, a Noite, o seu
arquétipo surgiu no Egito pré-dinástico
como a parteira Heket, que evoluiu para
Hek, a matriarca das monarquias. A sua
origem na Grécia era Trácia, uma região
no Noroeste grego, fato que mostra a sua
conexão com o culto das deusas da Ásia
Menor, do terceiro e quarto milênio a.C. Diferente de outras
divindades primordiais, Hécate foi absorvida pelo panteão
clássico grego, sendo descrita como neta da Grande Mãe
lunar Phoebe, filha dos titãs Asteria (deusa estelar) e Perseu
(símbolo da luz) e prima de Ártemis.
A sua representação mais antiga é como Hécate
Trivia, carregando uma tocha, usando uma coroa de
estrelas cujo brilho iluminava o caminho tríplice da
passagem do tempo e que servia para explorar a escuridão
(dos mistérios antigos e do inconsciente). Os Titãs eram
divindades pré-olímpicas destronadas por Zeus, mas ele
reconheceu e honrou a antiguidade e o poder de Hécate lhe
conferindo o domínio sobre os três mundos: o céu, a terra e o
mundo ctônico (subterrâneo). Apesar de nunca ter feito
parte do Olimpo, Hécate era reverenciada antes e acima das
outras divindades e ela tinha o mesmo poder que Zeus, ou
seja, o de dar ou retirar da humanidade dons e dádivas,
tornando-se assim a doadora das riquezas e bênçãos
cotidianas, regente dos mistérios do nascimento, vida e
morte. Tradições posteriores transformaram Hécate na filha
de Zeus e Hera e reduziram seu poder para governar apenas
o mundo subterrâneo, a noite e a Lua negra.
Como Hécate Triformis ela era a regente dos três
mundos, aparecendo como um grupo de três deusas ou uma
só, com três rostos ou três cabeças, usando uma coroa
tríplice e acompanhada por três animais (cão, serpente,
leão; ou cão, cavalo, lobo ou urso) que representavam as
estações (primavera, verão, inverno). Sua tríplice
representação na natureza era Selene, a Lua, Ártemis, a
caçadora na terra e Hécate no mundo subterrâneo, tríade
que controlava os ciclos de nascimento, vida e morte. Os
aspectos lunares eram simbolizados por Ártemis como lua
crescente, Selene, a lua cheia e Hécate, a lua minguante e
negra. Nas fases da vida feminina Ártemis era a virgem,
Perséfone, a jovem e Hécate, a anciã, ou visto de outra forma:
Perséfone, a filha, Deméter, a mãe e Hécate, a avó. Como
descrição dos relacionamentos femininos, Hebe era a
donzela, Hera, a mulher e Hécate, a viúva. Nos mistérios
agrícolas a semente era Kore, a espiga amadurecendo
Perséfone, e os grãos colhidos, Hécate. No mito do rapto de
Perséfone por Hades, Hécate é a figura chave, a única que
ouve os gritos de Perséfone, que intercede perante Helios
para ele revelar o paradeiro de Perséfone e que empresta sua
tocha para Deméter buscar a filha. É Hécate que conduz
Perséfone de volta para a terra - contribuindo assim para o
reencontro da mãe e filha e o renascimento da natureza - e é
ela que acompanha Perséfone de volta ao escuro reino de
Hades, lá permanecendo durante os meses de inverno. Este
mito foi a base dos Mistérios Eleusínios, que celebraram
durante dois milênios o eterno retorno dos ciclos de
nascimento, vida, morte e renascimento, com rituais
embasados nas práticas agrícolas do ciclo vegetativo.
Enquanto Deméter era a força que promovia o crescimento
vegetal acima da terra, Hécate sustentava o
desenvolvimento das raízes assegurando a nutrição das
plantas e Perséfone trazia a plenitude e beleza da colheita.
A materialização de Hécate como “Senhora das
Encruzilhadas” era o pilar sagrado Hecterion ou Hectarea,
colocado no cruzamento de três caminhos - do passado,
presente e futuro - e representando a deusa com três
cabeças e seis braços, que seguravam três tochas e seus
emblemas sagrados: a chave, a corda e o punhal. A chave
abria as portas para os mistérios ocultos e a sabedoria do
além. A corda era o cordão umbilical do renascimento e da
renovação. O punhal - depois transformado no athame das
bruxas e feiticeiras - cortava as ilusões e as amarras, sendo
símbolo do poder mágico. Invocada como “A Distante”,
Hécate era protetora dos lugares ermos, dos caminhos e das
encruzilhadas de três vias, onde recebia as oferendas
deixadas nas noites escuras e chamadas de “Ceias de
Hécate”. Lá ela aparecia segurando tochas nas mãos e
acompanhada por cães pretos uivando; devidamente
invocada, ela podia revelar segredos, a entrada para o
mundo subterrâneo, permitir e ajudar o intercâmbio com os
mortos. Seu guardião era Cérbero, o cão tricéfalo,
representando a estrela Sirius da constelação do Cão.
Prythania, a Rainha dos
mortos e do mundo subterrâneo
Hécate era guia e protetora
dos espíritos, auxiliando-os na sua
passagem do mundo dos vivos para
o local de repouso e regeneração do
mundo subterrâneo. Nas lendas
era descrita como o “Anjo
fosforescente” (Phosphoros),
simbol izando o br i lho das
decomposições e fermentações que
transformavam os resíduos
orgânicos em um composto fértil. Seus antigos bosques
sagrados de teixos, álamos e ciprestes foram transformados
em cemitérios cristãos; o teixo era a sua árvore sagrada por
excelência, um símbolo da morte e também da imortalidade
por ser perene e longeva, dizia-se que suas raízes nasciam
do mundo dos mortos e sua resina exalada pela folhas
ajudava na purificação dos espíritos. Como regente da
morte e decomposição física, Hécate também promovia a
fertilidade da terra e o nascimento de novas sementes,
acolhidas pelo ventre fértil e escuro da terra. Ela aparecia
nos cemitérios auxiliando a libertação do espírito do corpo
físico, mas também buscava e recolhia as almas perdidas,
que ela cuidava e orientava para seguirem seu destino após
o julgamento e a retificação dos seus erros. Nesta qualidade
era acompanhada pelas suas três irmãs - as Erínias ou
Fúrias -, que puniam todos aqueles que tivessem ofendido,
violentado ou matado suas mães; juntas ajudavam nas
purificações e expiações dos criminosos.
Hécate regia as grutas que eram entradas para seu
reino subterrâneo, onde ela morava junto de Hades,
Perséfone e seus irmãos: Thanatos (morte), Hypnos (sono) e
Morpheus (sonho). Quando os cães uivavam, acreditava-se
que Hécate passava, ela mesma podendo aparecer como
uma grande cadela preta. O cão era animal totêmico das
deusas da morte por conduzir os espíritos e perceber sua
presença no plano astral, por isso quando um cão uivava
para a Lua, supunha-se que ele anunciava uma morte ou a
passagem de Hécate. Cães pretos eram ofertados a Hécate
pelos praticantes da magia, fato que contribuiu para a
ênfase dada aos seus poderes destrutivos e macabros nos
mitos helênicos. A igreja cristã transformou Hécate em uma
figura demoníaca, “Rainha das bruxas” - as mulheres
praticantes de magia negra e ritos satânicos – que aparecia
acompanhada por um séquito de fantasmas e demônios nas
encruzilhadas, em noites de lua negra, que depois
assombravam as casas como fantasmas e vampirizavam os
homens solteiros, provocando-lhes poluções noturnas e
roubando assim seu poder.
Hécate, a Senhora da Visão
e da Magia
Hécate confere a todas as
mulheres habilidades intuitivas,
proféticas, mágicas e curadores.
Ela é a xamã arquetípica que se
movimenta entre os mundos,
ligando o plano visível ao invisível e
abrindo os véus para que possa ser
enxergado o que for necessário
para cura e regeneração. Por olhar
para as três direções, Hécate vê os padrões que conectam no
tempo eventos e situações, ela abre o conhecimento do
passado, dá a direção segura para o presente e desvenda os
perigos, as promessas e possibilidades do futuro. Hécate
envia os sonhos proféticos e os sinais sutis, ela sussurra
segredos e orienta a comunicação sutil e intuitiva com os
espíritos, sendo a mensageira ancestral do mundo psíquico.
Na sua manifestação como Anthea, a “Senhora das visões
noturnas”, a sua luz difusa inspira artistas, visionários e
videntes, mas se for absorvida em demasia, sua energia pode
provocar alucinações, pesadelos e desequilíbrios psíquicos e
mentais.
Como padroeira da magia, Hécate era invocada nos
rituais noturnos, nas oferendas e antes do uso de oráculos,
para ensinar os segredos das plantas e o poder dos
encantamentos. Sua proteção era invocada pelas mulheres
gregas antes de saírem de casa e para a segurança dos seus
filhos e familiares. No dia 13 de agosto um grande festival
homenageava Hécate como a “Senhora das Tempestades”,
para que as colheitas fossem protegidas das chuvas
torrenciais, as moradias e seus habitantes poupados de
inundações e descargas elétricas. Hécate Trivia é honrada na
noite de 16 de novembro e no sabbat celta Samhain, bem
como invocada nas comemorações dos ancestrais dos
diversos cultos pagãos europeus, antigos ou atuais.
A Inquisição condenou e matou milhões de mulheres
durante os cinco séculos da sua atuação, perseguindo,
torturando e matando aquelas que eram vistas como devotas
de Hécate, por serem dotadas de poderes curadores, mágicos
e visionários. Hécate foi denegrida e seu culto proibido por ser
a padroeira das parteiras, curandeiras, benzedeiras e xamãs,
cujos poderes eram cobiçados pelos médicos e execrados pela
igreja. Suas seguidoras foram as vitimas da Inquisição por
serem bonitas ou feias, jovens ou velhas, virgens ou viúvas,
pobres ou ricas, independentes ou dementes, ignorantes ou
sábias, cristãs ou pagãs, sendo acusadas de bruxaria, magia
negra, pacto com o demônio, que lhes conferia poderes em
troca das suas almas.
Hécate, a Guardiã dos Mistérios
Ocultos
Hécate Trivia nos auxilia relembrar e
transmutar o passado, curar e fortalecer
o presente, enxergar e realizar o futuro,
sendo guia e protetora no limiar das
transições. Se ela for devidamente
honrada, nos concede os dons da visão,
inspiração, criatividade e regeneração.
Se for renegada ou reprimida, a sua
sombra se manifesta como inércia,
estagnação e desequilíbrio mental. Por
ser a regente da morte, ela representa além do lado destrutivo
da vida, as forças necessárias para tornar possível a cura e
renovação. A sua função paradoxal é enxergar na
escuridão e iluminar os caminhos, pois a sua chave abre o
acesso para a riqueza do inconsciente e sua tocha ilumina
as sombras e os medos. Hécate nos guia no mundo escuro
onde podemos ter a revelação dos mistérios, receber uma
visão ou mensagem. Mas o caminho para a sua sabedoria
inclui a descida no submundo do nosso inconsciente. As
imagens simbólicas que aparecem nos sonhos são
mensagens de Hécate, que nos revelam os dramas e
conflitos interiores, que podem se transformar em medos,
fobias e pesadelos. Por isso Hécate era temida como a
“Velha Bruxa”, com nariz adunco e corcunda, que enviava
demônios para torturar as mentes dos homens, mãe dos
vampiros que traziam o terror noturno e os fantasmas dos
medos. Hécate tanto era personificada pela parteira que
assistia aos nascimentos, como também pelas mulheres
que ajudavam os moribundos, facilitando o desligamento
do espírito e sua travessia entre os mundos. Portanto ela
pode ser a nossa parteira interior, que nos ajuda nos livrar
do “peso morto”: atitudes ultrapassadas, conceitos
limitantes, lembranças dolorosas, atitudes compulsivas ou
obsessivas. Hécate é a testemunha silenciosa que observa,
anota e registra os nossos processos interiores, sendo um
precioso auxilio na exploração do inconsciente e nas
terapias da psique. Ela assiste e auxilia em todos os
processos de nascimento difícil: para escrever um livro,
realizar uma obra de arte, compor uma música, dirigir uma
peça de teatro ou filme, para ensinar ciências ocultas ou
cuidar de clientes como psicoterapeuta.
Como regente da lua escura Hécate personifica
tanto os ciclos de morte (nos obrigando a encarar os medos
que surgem durante as crises), quanto os de renovação
(que requerem mudanças e o desapego daquilo que já
morreu ou passou). O patriarcado nos ensinou a temer
Hécate como a bruxa má e hostil, que leva os vivos para o
mundo dos mortos, na realidade sua missão como
psicopompo. É importante reconhecer que estas imagens
horrendas e chocantes são meras projeções do medo
inconsciente do patriarcado perante os poderes femininos,
que ficaram gravadas no inconsciente coletivo, reforçadas
por séculos de repressão e interpretação errônea dos
poderes femininos da noite, da lua negra e de Hécate. Para
resgatar as qualidades luminosas de Hécate dentro de nós,
precisamos descartar as crenças falsas, os conceitos
errados, redimir e descobrir a verdadeira face de Hécate,
entrando na sua luz velada, que ilumina os arquétipos
pessoais e transpessoais. As imagens reprimidas no
inconsciente tornam-se - após sua liberação - em energias
criativas, que removem a energia bloqueada e a
imobilização, nos levando para um novo ciclo de
renascimento e renovação.
Hécate nos ensina que o caminho para a visão, que
permite a renovação, encontra-se no movimento espiralado
pela escuridão, quando a sabedoria é adquirida através das
experiências e desafios da vida. Para receber os dons de
Hécate precisamos buscar, encontrar, nos conciliar e
honrar seus aspectos existentes dentro de nós mesmas,
claros ou escuros.
Entregando-lhe a guarda do nosso inconsciente,
sem resistir aos processos de mudança, poderemos
ampliar e perceber melhor a riqueza oculta do nosso
próprio mundo subterrâneo. Ao reverenciar Hécate
precisamos louvar e honrar a sua presença,
ofertando–lhe uma vela na lua negra e nas
encruzilhadas dos nossos caminhos, darlhe
algo que nos pertenceu, mas que já
cumpriu seu ciclo e objetivo. Assim
poderemos atravessar o limiar entre a
escuridão e a luz, entre passado e presente e
resgatar o nosso próprio poder: lunar,
telúrico e ctônico